O que a aprovação da MP 996/2020 pela Câmara dos Deputados na semana passada, criando oficialmente o programa Casa Verde e Amarela no lugar do MVMV (Minha Casa Minha Vida), mostra sobre o Brasil atual? Os sinais apontam para um cenário de menos autonomia, menos liberdade e menos democracia, misturados com iguais doses de mais controle, mais manipulação e mais autoritarismo. Uma das consequências nefastas dessa narrativa é o desmonte das políticas de habitação social no país, com a exclusão sumária das famílias de baixa renda dos programas habitacionais do governo federal.
O projeto está agora sob apreciação do Senado. Por se tratar de medida provisória, o texto aprovado no Congresso Nacional deverá entrar em vigor assim que publicado no Diário Oficial da União. A extinção do MCMV é considerada uma ação nociva para o desenvolvimento da economia nacional, sobretudo por ignorar a alta capacidade do programa de gerar emprego, renda e tributos, com benefícios como a redução do déficit habitacional de 7,78 milhões de moradias no país.
Ao contrário do Minha Casa Minha Vida, que atendia a parte mais vulnerável da população, com subsídios para permitir que esse segmento tivesse acesso à moradia, o Casa Verde e Amarela deixa de fora a faixa 1, justamente as famílias mais pobres, com renda de até R$ 1,8 mil. O novo programa foi formulado à revelia dos movimentos populares urbanos, com vasta contribuição na luta por moradia popular e formatação de programas destinados à moradia digna, notadamente para a faixa populacional de baixa renda ou desempregada. Para formatar essa versão disfarçada de política habitacional, o governo federal deixou de fora os movimentos populares urbanos, mas estabeleceu diálogo com os setores empresariais da habitação e dos bancos.
O ataque aos segmentos vulneráveis da população fica evidente no texto da MP 996. O foco do Casa Verde e Amarela são as famílias com renda média mensal de até R$ 7 mil, com previsão de incentivos maiores para as regiões Norte e Nordeste. Não há sequer uma meta relativa ao segmento de renda de até R$ 1,8 mil, a chamada faixa 1 do Minha Casa Minha Vida, que tem sido esvaziado no atual governo e será extinto. “Não dá para falar que o Casa Verde e Amarela é um programa habitacional”, diz Sergio Takemoto, presidente da Fenae (Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal).
A nova proposta governamental ignora o público da chamada faixa 1 do MCMV, programa que concedia subsídios de até 90% do valor do imóvel, com parcelas fixas de R$ 270, no máximo, e taxa de juro zero para famílias com renda de até R$ 1,8 mil. Não é esse o foco do Casa Verde e Amarela do governo Bolsonaro, que prevê o financiamento de imóveis para famílias que recebam até R$ 7 mil mensais, com taxas de juros distintas para cada um dos três grupos de renda.
Em termos gerais, o programa Casa Verde e Amarela prevê três grupos de renda familiar, com condições variadas de juros, subsídios, acesso à regularização fundiária e reforma do imóvel. A mais baixa, com renda de até R$ 2 mil e R$ 2,6 mil nas regiões Norte e Nordeste, integra o grupo 1. Os de até R$ 4 mil fazem parte do grupo 2, enquanto as famílias com renda mensal de até R$ 7 mil pertencem ao grupo 3.
No programa Minha Casa Minha Vida, havia a faixa de renda de até R$ 1,8 mil, atendida exclusivamente por recursos do Orçamento da União. Essa faixa foi extinta. Para acabar com o benefício para a população mais carente, o governo alegou falta de verba e suspendeu novas contratações no sistema antigo.
Abandonado pelo atual governo e considerada a maior iniciativa para habitação popular da história do Brasil, o programa Minha Casa Minha Vida construiu e entregou mais de quatro milhões de unidades habitacionais no período de 2009 a 2016, contratando 5,5 milhões de financiamentos habitacionais. Isso significa investimentos de cerca de R$ 105 bilhões, que beneficiaram mais de 16 milhões de pessoas, com destaque para o público da faixa 1.
Entre 2009 e 2018, de acordo com estudo de Fernando Nogueira da Costa, professor-titular do Instituto de Economia da Unicamp, o MCMV propiciou arrecadação de aproximadamente R$ 163 bilhões em tributos ao longo de toda a cadeia produtiva da construção civil. No período, a quantidade de empregos gerados foi de mais de 1,2 milhão, sendo 775 mil nas obras e com força de trabalho com menor qualificação.
O Minha Casa Minha Vida, por outro lado, cobria 52% dos municípios do país, com aproximadamente 1,43 milhão de unidades entregues. Em favor do público da faixa 1, formado por famílias de baixíssima renda, foram entregues 38.316 unidades.
O programa Casa Verde e Amarela é de crédito habitacional, um produto de mercado, com taxas de juros diferenciadas e desfigura completamente o que existia no Minha Casa Minha Vida, um programa social de habitação. Assim, o novo programa habitacional do atual governo praticamente exclui a faixa 1, com subsídios limitados e sem a política do programa anterior, que era a de integrar um conjunto de equipamentos sociais de educação, saúde, de planejamento de transporte, iluminação e segurança.
A ilusão do financiamento
A MP 996 não prevê aporte significativo de recursos orçamentários para produção habitacional, nem subsídios como havia na faixa 1 do Minha Casa Minha Vida, que atendia famílias com renda até R$ 1,8 mil e as prestações não passavam de 10% da renda pelo período de 10 anos. Agora, o foco do novo programa é abrir novas linhas de financiamento, com prestação mensal que chegará a 30% da renda por um período de 30 anos. Isto poderá confundir moradia de interesse social com produção de moradias para o mercado imobiliário. Além disso, a MP do Casa Verde e Amarela busca deixar de fora a Caixa Econômica Federal e outros bancos públicos, voltando-se, prioritariamente, ao interesse do mercado financeiro.
Na busca por avançar na regularização fundiária, a MP aprovada na Câmara mira em novas matrículas a serem hipotecadas, no lugar de garantir segurança na posse. O propósito, ao que parece, é utilizar os recursos previstos para a produção habitacional na preparação e fortalecimento da especulação imobiliária. Isso leva a que a alternativa do financiamento se configure como uma ilusão, pois exclui a maioria da população do acesso à moradia, devido às restrições cadastrais e ao valor das mensalidades.
Concretamente, o Casa Verde e Amarela modifica questões importantes de outros programas e leis anteriores, ao mesmo tempo que suprime o papel de controle social previsto na lei do SNHIS (Sistema e Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social). A lei do FDS (Fundo de Desenvolvimento Social) é alterada e as definições sobre financiamentos, critérios, taxas aplicadas e outras deixam de ser realizadas dentro do SNHIS e passam a ocorrer apenas no âmbito do Conselho Curador do FGTS, com a Caixa na condição de agente operador.
Retrocesso no direito à moradia
Para Sergio Takemoto, a MP da Casa Verde e Amarela representa um grande retrocesso e integra o processo de desmonte do Estado brasileiro. “O que foi apresentado não se caracteriza como um projeto nacional para o enfrentamento do déficit habitacional. É diferente do Minha Casa Minha Vida, que surgiu como uma proposta anticíclica após a crise de 2008/2009, mas que carregava uma função social muito forte”, declara.
O presidente da Fenae lembra que a Caixa sempre teve papel fundamental para a viabilização do Minha Casa Minha Vida. “Agora, com base em uma política de caráter privatista, o financiamento do Casa Verde e Amarela prevê a participação de bancos privados. Essa é mais uma tentativa para enfraquecer a Caixa 100% pública, social e forte, abrindo caminho para que a empresa seja fatiada, fique menor e comprometa sua atuação como principal agente operador das políticas públicas do país”, denuncia.
O presidente da Fenae alerta que a liberação governamental para que bancos privados passem a operar no financiamento imobiliário, além de demonstrar o enfraquecimento da Caixa como banco público e de caráter social, mira no desmonte do Minha Casa Minha Vida. É mais do mesmo, pois, de acordo com ele, a abertura para outras instituições financeiras, combinada com a desmobilização das áreas que operam as políticas sociais da Caixa, apenas revela o rosto perverso desse governo privatista e entreguista.
“Não haverá produção de moradia de interesse social sem grandes subsídios para as famílias de baixa renda, o que significa aporte de recursos do Orçamento Geral da União. É necessária ainda que seja revogada a PEC do Teto de Gastos, para que a União, os Estados e os municípios tenham mais recursos para investir na moradia e na regularização fundiária. As políticas de desestruturação e privatização da Caixa são um entrave para a retomada do desenvolvimento urbano do país, para obras de infraestrutura e para a construção de moradias de interesse social. Continuaremos na luta contra todos esses retrocessos”, completa Sergio Takemoto.
Contra desmonte do MCMV
Representantes de movimentos que lutam pelo direito à moradia protestaram contra o desmonte das políticas de habitação social, com o fim do programa Minha Casa Minha Vida, a mais importante ação governamental na área até o momento, e a criação do Casa Verde e Amarela por meio de MP.
De acordo com Evaniza Rodrigues, da UNPM (União Nacional por Moradia Popular), e diferentemente do Minha Casa Minha Vida, o Casa Verde e Amarela é o não-programa. Isto porque, segundo ela, o novo modelo simplesmente atualiza as concessões de financiamentos habitacionais para as faixas 1, 1,5, 2 e 3 de renda, excluindo totalmente o atendimento para as faixas mais vulneráveis. “É importante dizer que moradia é um direito e não deveria estar condicionada a condições cadastrais de ter ou não acesso ao crédito. Na medida em que aprova a MP do Casa Verde e Amarela na Câmara dos Deputados, o governo Bolsonaro nega o direito à moradia para mais de 7 milhões de famílias, justamente aquelas com renda abaixo de três salários-mínimos, correspondendo a mais de 80% do déficit habitacional. Isso reflete a falta de políticas habitacionais estruturadas no país”, declara.
Na prática, segundo a representante da UNMP, a faixa 1 do MCMV, apesar de ser a que mais precisa de crédito imobiliário, foi a mais prejudicada com a exclusão no novo programa. “A consequência disso é a tragédia da habitação, com mais gente morando nas ruas, mais gente morando em condições precárias e de risco e mais casos de despejos provocados por falta de condições de pagar as prestações da moradia”, prega. Segundo ela, as famílias não podem mais esperar, pois moradia é direito, é princípio e é a partir dela que, muitas vezes, se realizam os demais direitos no Brasil.
Para Getúlio Vargas Júnior, presidente da Conam (Confederação Nacional das Associações de Moradores), a MP da Casa Verde e Amarela joga para o mercado financeiro famílias de baixíssima renda, a chamada moradia de interesse social. “É um retrocesso em relação ao MCMV, sobretudo por entregar para os bancos privados a produção habitacional, tirando a exclusividade dos bancos públicos. É a Caixa que faz a maior parte das operações ao responder por 70% do crédito imobiliário no país”, reitera.
O presidente da Conam esclarece que o movimento comunitário e de bairro irá seguir mobilizado e combatendo essa narrativa privatista. “Mas, para destruí-la e voltar a um processo de construção coletiva e de participação popular, só derrotando Bolsonaro e seu governo”, completa.
O coordenador da CMP (Central de Movimentos Populares), Raimundo Bonfim, também avalia que a MP do programa Casa Verde e Amarela transformada agora em lei, como todas as medidas do governo Bolsonaro, atenta contra os interesses das classes populares. E ressalta: “Uma política habitacional sem subsídios exclui praticamente 80% da população de ter acesso à moradia no país, exatamente onde fica concentrado o maior déficit habitacional. O que o Minha Casa Minha Vida previa, um subsídio para a população de baixa renda, agora desaparece com o velho programa travestido de novo. O subsídio foi uma revolução trazida pelo MCMV, por permitir que um contingente de 1,2 milhão de pessoas tivesse acesso à casa própria”.
Raimundo Bonfim considera absurdo e inaceitável ver um país que vinha construindo uma política nacional de habitação, com uma série de ações aprovadas pelos conselhos e conferências de cidades, jogar tudo no lixo e voltar para antes dos anos 2000, quando apenas existia política habitacional para quem tinha mais renda. “Quem mais precisa, fica de fora. É isso o que faz Bolsonaro com toda a classe trabalhadora: ataca direitos, desmonta programas como o Minha Casa Minha Vida e cria apenas projetos de fachada como o Casa Verde e Amarela, que não atende a população de baixa renda”, lamenta.
De acordo com Bonfim, a Central de Movimentos Populares continuará denunciando o governo Bolsonaro e suas políticas de desmonte social, como está ocorrendo com o programa Minha Casa Minha Vida.
Fonte: Fenae (Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal)