Não vai adiantar dizer “eu avisei”, como acontece em outros casos na política nacional.
A aprovação pelo Senado Federal do Projeto de Lei nº4.162 de 2019 no dia 24 de junho, de autoria do poder executivo e relatado pelo Senador Tasso Jereissati do PSDB do Ceará, que altera várias leis, entre elas a 11.445 de 2007, que definiu as diretrizes para o saneamento básico no Brasil, vai significar a ampliação da possibilidade de atuação de grupos privados nacionais e internacionais no saneamento, com destaque para o segundo grupo.
Destaque-se que saneamento básico inclui o abastecimento de água, a coleta e destinação dos esgotos para tratamento, o manejo dos resíduos sólidos e o manejo das águas pluviais (drenagem urbana).
Notem, porém, que os resíduos sólidos e a drenagem sequer são considerados no debate em questão, provocando, assim, uma dissociação negativa para a área de saneamento básico na medida em que esses serviços públicos se relacionam diretamente com as ações de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Talvez, o abandono dessas áreas seja porque não tenham atratividade para o mercado.
No debate que travamos em defesa do saneamento básico público por mais de 2 anos no Congresso Nacional, afirmávamos, entre outras coisas, que a aprovação do PL ampliaria as desigualdades e o aumento da exclusão dos mais pobres do acesso aos serviços.
Isso porque a lógica que norteia a ação do setor privado, legitimamente, é o lucro.
Portanto, incompatível com a necessidade de se levar saneamento básico para as áreas onde vivem as pessoas em processo de vulnerabilidade nas periferias das grandes cidades, nas favelas, nos morros, nas ocupações, nas áreas rurais e nos pequenos municípios.
Dizíamos mais: enganam-se aqueles que imaginam que o saneamento básico será operado por empresas nacionais fortalecendo a economia nacional.
Hoje, poucas empresas controlam mais de 80% dos serviços privados de saneamento no Brasil, sendo as maiores a BRK Ambiental (controlada pelo fundo canadense Brookfield); Aegea, que tem como acionista o GIC (fundo soberano de Singapura); Iguá (que tem como acionista indireto o fundo canadense AIMCo); e a GS Inima (da coreana GS).
Pois bem, bastaram 2 dias da aprovação do PL para que nosso alerta comece a se confirmar.
A matéria publicada no jornal Folha de São Paulo em 26 de junho, cuja chamada é “Nova lei de saneamento anima fundos globais de investimento”, aponta que, além dos grupos já citados, outros que se interessam pelo “negócio” são os fundos americanos (como o Macquarie), canadenses e do Oriente Médio.
Também o grupo espanhol Acciona e os chineses CGGC (Grupo Gezhouba).
Mas não é só isso.
Segundo um porta-voz do setor privado, a intenção é disputar ativos em regiões mais populosas, em que o retorno financeiro é maior (grifo nosso).
E continuam: “Os ativos que têm maior interesse são os de regiões metropolitanas. No interior, temos dificuldades grandes com municípios que têm tratamento de água, mas não de esgoto, que é o que demanda mais investimento”.
Lembram da argumentação, inclusive repetida pelos senadores (as), de que a salvação do saneamento estaria na mão do setor privado?
Pois é, não é isso que afirmam agora. Vejamos: “As desestatizações serão pontuais e não são o que vai salvar o saneamento (grifo nosso). O capital privado hoje vai entrar mais em parcerias com as estatais e em projetos de concessão.”
Os desafios para a universalização do saneamento básico são grandes, é verdade.Porém, as respostas não estão no PL aprovado.
Saneamento básico é um serviço público com características de monopólio natural, em que as pessoas não podem escolher o prestador.
O acesso à água e ao esgotamento sanitário é um direito humano fundamental que não pode ser negligenciado em nome da garantia de retorno financeiro de grupos privados.
A universalização do acesso a esses serviços públicos só será alcançada com retomada dos investimentos com recursos, principalmente de instituições públicas, do Orçamento Geral da União (OGU), com implementação do Plano nacional de Saneamento (PLANSAB), com a retomada dos instrumentos de participação e controle social (como o Conselho das Cidades), com um programa de recuperação e revitalização dos operadores públicos e com a criação de um “Fundo Nacional de Universalização do Saneamento”.
O argumento da crise fiscal do Estado brasileiro não vale.
Se, quando foi preciso, o Estado buscou recursos públicos para salvar bancos, por que não fazê-lo agora para salvar vidas?
Não vai adiantar dizer “eu avisei”.
A luta pela garantia do saneamento básico público agora sai do âmbito nacional (exceto as ações judiciais) e se transfere para o âmbito dos Estados e Municípios. Não daremos trégua.
Edson Aparecido da Silva é sociólogo, mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC, secretário-executivo do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – ONDAS e assessor de saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários – FNU