A família Valencia tem que pensar muito bem em que gasta sua água. Perto do antigo leito do rio Ligua, relembram o passado. “Muitos animais morreram, fomos obrigados a vender os animais, foi uma miséria pura”. A família de agricultores perdeu seus dez cavalos por falta d’água. “A gente teve que parar de lavar roupa para poder cozinhar”.
O problema da água presente em grande parte do território do Chile é muito visível na região de Petorca, no interior de Valparaíso. Nesta área, cultivam-se 4% dos abacates do país. Junto às terras secas dos pequenos agricultores encontram-se grandes superfícies verdes.
Rodrigo Mundaca, porta-voz da organização ecologista local Modatima (Movimento de Defesa da Água, da Terra e do Meio Ambiente), denuncia que as empresas produtoras agrícolas extraem a água das nascentes dos dois rios da área. Por isso, a água não chega as áreas povoadas da região.
“Em 20 anos, a região passou de 2.000 a 14.500 hectares de abacates; o negócio agro-exportador tem provocado uma feroz privatização da água na região desde 2007”, disse Mundaca ao UOL.
A governança e privatização da água é um dos temas em debate no 8° Fórum Mundial da Água, realizado em Brasília nesta semana.
A região de 75 mil habitantes recebe água uma vez por semana com caminhões-pipa
Carros-pipa abastecem casas
Segundo a organização Modatima, não sai mais água de 80% das torneiras de Petorca. Na região moram 75.000 pessoas. O Estado providencia uma vez por semana água para a população por caminhões-pipa.
Quando insuficiente, os vizinhos têm que contratar eles mesmos um caminhão com água, o que custa caro: mil litros de água são vendidos por 14 dólares. A maioria da população da região (70%) ganha menos de 23 dólares por dia.
A dificuldade financeira para comprar água é ainda pior porque, com a seca, parte da população perdeu sua principal fonte de renda, a agricultura e a pecuária.
Os 50 litros diários de água que são entregues pelas autoridades não são suficientes para Verónica Vilches, moradora de San José. A água não é bastante para beber, tomar banho, lavar louça, reclama ela. Segundo a Universidade Federal de São Paulo, a cota de água a que a chilena tem direito é o equivalente ao gasto em um banho de chuveiro de 5 minutos.
Sem água, sem pecuária As 11 casas de “El Bronce” ficam cada vez mais vazias. Os jovens emigram para trabalhar na mineração, depois de vender os animais. “O estado foi claro, a água providenciada é só para consumo humano, sinto raiva, impotência, estamos de mãos atadas e abandonados”. Para Ingrid Wehr, representante da fundação Heinrich Böll no Chile, o problema está mesmo nas leis chilenas. “A Constituição chilena estabelece no artigo 19 que a água é um bem econômico, que pode-se comprar no mercado segundo a oferta é a demanda, é um caso único no mundo”. Para ela esse problema se estende ao longo de todo o território chileno.
“Na área central do Chile, os donos da água são as industrias agrícolas, no norte as mineradoras e no sul as hidrelétricas e as produtoras de madeira. Todos os rios do Chile têm dono”. Segundo Wehr as empresas proprietárias das fontes de água do Chile têm a livre capacidade de fixar preços do líquido tanto para as grandes empresas como para as distribuidoras que atendem à população.
A situação se agrava pela falta de mecanismos reguladores que garantam a chegada de água para os chilenos. “Em nenhum artigo da legislação chilena aparece a preferência do consumo humano como preferencial frente à indústria, para esse verão temos uma previsão de meio milhão de chilenos que não terão acesso a água se não for através de caminhões” disse Wehr.
No Brasil, por lei, a água é um bem público e dotado de valor econômico. Como bem público, explica Jorge Werneck, um dos coordenadores do Fórum Mundial da Água, sua privatização é impossível. Só é privatizável o serviço público, e não o bem. “O que se tem é que em algumas localidades o serviço de coleta da água, tratamento, distribuição para a população é privatizado. Existem companhias privadas atuando no setor, assim como existem empresas públicas”, pontua.
UOL