O Ministério da Saúde entregou, até 24 de abril, 350 dos 2 mil leitos de UTI prometidos para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. O número representa 17,5% do total. O compromisso de entrega foi feito no mês passado, antes da demissão do agora ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.
Segundo a pasta informou ao G1, “a escassez de respiradores no cenário internacional” é o motivo para a demora.
O ministério afirma, inclusive, que um dos editais para compra do material não teve empresas interessadas por causa da falta de respiradores no mercado. (Veja detalhes abaixo).
Segundo os dados do governo, até 24 de abril, 15 estados (Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Paraíba, Piauí, Rondônia, Roraima, Sergipe e Tocantins) e o Distrito Federal não haviam recebido nenhum leito.
Os leitos, que seriam específicos para o combate à Covid-19, foram anunciados em 12 de março pelo então secretário-executivo do ministério, João Gabbardo, que afirmou que eles seriam entregues conforme a necessidade de cada estado.
“Leito de UTI locado significa [que] não existe esse leito funcionando no hospital, o hospital precisa ampliar o atendimento, tratamento intensivo, ele transforma uma determinada área e diz assim: ‘aqui nós vamos colocar mais 10 leitos de UTI’. Então, se o gestor [municipal] solicitar para o Ministério dizendo ‘olha, aqui em São Paulo estou precisando colocar mais 10 leitos em tal lugar. A demanda está ultrapassando a nossa capacidade de atendimento’, o Ministério aciona essa licitação e, em uma semana, no máximo em dez dias, quando é muito distante – em São Paulo é muito mais rápido – esse leito já estará funcionando, com todos os insumos necessários. O hospital só entrará com a equipe médica, de enfermagem, para que o leito possa funcionar rapidamente. Esses são para o coronavírus”, disse Gabbardo à época.
Mas a entrega não atendeu ao crescimento da doença pelo Brasil. Até terça-feira (21), a taxa de ocupação de leitos de UTI no Ceará, por exemplo, era de 100%. No Amazonas, era de 96% até quinta-feira (23). Nenhum dos dois estados recebeu leitos, segundo dados do governo.
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Já outras unidades da federação, como Paraná, Rio Grande do Norte e Santa Catarina, apesar de terem menos da metade dos leitos de cuidados intensivos ocupados, receberam novos leitos do governo federal.
Os estados de Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, com pouco mais de metade dos leitos ocupados, também foram contemplados, assim como Pernambuco e Rio de Janeiro, que tinham taxas de ocupação acima de 70%.
Leitos de UTI fornecidos pelo Ministério da Saúde
UF | LEITOS |
São Paulo | 80 |
Minas Gerais | 50 |
Rio de Janeiro | 40 |
Bahia | 40 |
Paraná | 30 |
Rio Grande do Sul | 30 |
Santa Catarina | 20 |
Pará | 20 |
Pernambuco | 20* (*10 instalados) |
Mato Grosso do Sul | 10 |
Rio Grande do Norte | 10 |
TOTAL | 350 |
Questionado sobre a distribuição, o Ministério da Saúde afirmou, em nota, que “a distribuição dos leitos leva em conta critérios como o número de casos, a população local e o número de leitos instalados”, e que “todos os estados devem receber pelo menos um kit, que conta com 10 leitos de UTI adulto, sendo que cabe aos gestores locais a disponibilização de espaços físicos para montagem dos leitos.”
Sem interessados
21 de abril: mulher e criança andam de mãos dadas com máscaras protetoras contra a Covid-19 na Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. — Foto: Ricardo Moraes/Reuters
Os leitos planejados pelo Ministério da Saúde são, na verdade, “kits” que incluem diversos materiais para atendimento aos pacientes com Covid-19, incluindo os respiradores. Inicialmente, o governo buscou interessados para fornecer os primeiros 1 mil dos 2 mil prometidos.
Nos dias 17 e 20 de março foram assinados contratos com duas empresas para fornecimentos desses “kits”, incluindo o transporte:
- RTS Rio S/A, sediada no Rio de Janeiro, que ficou responsável por entregar 200 leitos. Esses foram entregues e destinados a São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Segundo o Ministério da Saúde, “o remanejamento inicial dos primeiros leitos para esses estados se deu com base na curva epidemiológica, além da pronta estrutura fornecida pelos gestores locais para montagem dos equipamentos.”
- LifeMed, sediada em São Paulo, que deveria entregar 340 leitos. A empresa afirma que, até agora, 200 foram entregues. Na conta do ministério, 150 já foram distribuídos (veja tabela acima), com 140 funcionando. A assessoria do governo afirma que os outros 50 aguardam interesse dos estados, em “standby”.
Quando um terceiro edital foi lançado, que previa a compra dos outros 460 leitos do primeiro lote, não houve empresas interessadas.
“Não apareceram fornecedores tendo em vista a escassez de respiradores no cenário internacional – um dos itens que integra o kit de leitos”, afirmou a pasta. Desde então, não houve novos chamamentos.
Questionado pelo G1, o órgão disse que a instalação dos 10 leitos que foram entregues em Pernambuco mas ainda não estão funcionando são de responsabilidade do estado. O G1 entrou em contato com a Secretaria de Saúde do estado, mas não teve retorno até a publicação desta reportagem.
Desigualdade regional
14 de abril, Manaus, Amazonas: Agentes de saúde ajudam paciente com Covid-19 no hospital de campanha municipal Gilberto Novaes. O Amazonas é um dos estados mais atingidos pelo novo coronavírus no país. — Foto: Bruno Kelly/Reuters
A desigualdade na distribuição dos leitos não é surpresa para a sanitarista Ligia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e para o economista Pedro Amaral, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Pedro explica que a maior parte do investimento federal em saúde é feito por emendas parlamentares – e, por isso, segue menos a necessidade da Saúde e mais a política. Ele estuda a distribuição de leitos no sistema de saúde brasileiro há mais de dez anos.
“O peso político dos estados do Nordeste e do Norte sempre foi menor, então eles emplacam menos emendas parlamentares no orçamento e recebem menos equipamentos”, explica.
Ligia lembra que “o Brasil é um país imenso que sempre esteve voltado para as cidades mais ricas, os estados mais ricos. A região Norte, a Amazônia, é completamente despriorizada”, diz a sanitarista da UFRJ.
“Já não tinham leitos de CTI no Amazonas. Todas as pessoas que infartaram, precisavam de leitos de UTI no pós-operatório, por complicações de neoplasias, já não tinham leitos de UTI. O que a pandemia faz é deixar isso claro e de uma vez só”, diz Ligia. Manaus é a única cidade amazonense com leitos de cuidados intensivos.
Para Pedro, o problema dos leitos no Brasil não é a quantidade – segundo o Ministério da Saúde, são 55,1 mil, metade deles no SUS –, mas, sim, a distribuição deles pelo território. “Sempre teve o suficiente, mas sempre viu fila. Algumas regiões sempre tiveram taxas de ocupação muito baixas, e outras acima de 100% – porque não recebem a quantidade de leitos”, avalia.
Ele afirma que estudos anteriores já permitiam prever que os estados de Amazonas, Ceará e Pernambuco teriam problemas mais cedo. Isso porque, concordando com a avaliação de Ligia, se a oferta de leitos de UTI nesses lugares já era baixa antes da pandemia, “se tivesse um aumento de demanda seriam os primeiros a entrar em colapso”, explica o economista.
E, no Amazonas, existe um outro agravante, lembram os especialistas: a falta de profissionais. Tem crise que não é so de equipamento. O equipamento não funciona sozinho”, ressalta Ligia, que lembra ainda a falta de pagamento a equipes de saúde amazonenses no ano passado.
“A gente vê as notícias – médico, enfermeiro que morre“, acrescenta Pedro. O afastamento é muito intenso nesse grupo. Pode ter o leito, os equipamentos, respiradores – se não conseguir levar os profissionais, não adianta”.
Habilitação de leitos do SUS
24 de abril: agentes de limpeza desinfectam a Favela do Vidigal, no Rio de Janeiro. — Foto: Pilar Olivares/Reuters
Além dos leitos locados, o governo também prometeu acelerar o processo de habilitação dos leitos de UTI do Sistema Único de Saúde (SUS). Habilitar um leito significa que o hospital passa a poder cobrar do Ministério da Saúde o valor da diária de internação do paciente.
Até esta sexta-feira (24), 1.740 leitos haviam sido habilitados pelo Ministério da Saúde para o combate à pandemia. O governo diz que o investimento é de R$ 255 milhões.
A habilitação dos leitos depende de um investimento inicial dos estados, segundo o Ministério da Saúde – como, por exemplo em respiradores. A partir daí, o custeio é feito pela pasta. No dia 8 de abril, o governo determinou que o valor diário que pagaria pela internação em UTI de cada paciente com Covid-19 passaria a ser de R$ 1,6 mil. Antes, esse valor era de R$ 800.
“O SUS depende da articulação entre governos, estados e municípios. Certamente houve pedidos dos governos da região Norte, do governador do Amazonas, inclusive desesperado, do prefeito de Manaus, mas há um jogo de forças que favorece uns estados”, explica Ligia Bahia, da UFRJ.
“Na realidade, favorecerá sempre mais os estados que puderem, eles próprios, avançarem. Como São Paulo avançou. São Paulo já era o estado que tinha bastantes leitos de CTI e conseguiu expandir mais a rede do que os estados que têm menos. O recurso federal é o único que pode ser redistributivo. São Paulo, com seu ‘orçamentão’, vai colocar dinheiro em São Paulo”, explica Ligia.
“O que o governo federal tinha que fazer era ter um aporte de recursos muito grande, que não teve. As promessas do Ministério da Economia de transferir recursos para o Ministério da Saúde não foram cumpridas”, afirma.